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Foto do escritorAna Lúcia

Entrevista com Fátima Abbate, tradutora de Machado de Assis


Fátima fala sobre a experiência de traduzir "A Cartomante", de Machado de Assis, para o inglês. Confira!


Ana Santana entrevista a Tradutora Fátima Abbate



1. Como os livros e as palavras são tão presentes em sua vida, nunca pensou em ser escritora?


Desde muito pequena, tive contato com os livros e com as palavras. Minha mãe era professora de Língua Portuguesa, Inglesa e Alemã. Tínhamos livros por toda a casa. Meu pai e meus avós, de ambos os lados, eram leitores vorazes, em especial dos clássicos da literatura. Aprendi a ler no colo de meu avô paterno: ele lia os trechos de romances de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Enquanto lia, chamava minha atenção para o som das palavras e o significado implícito na combinação das letras construindo o significado.


Lembro-me como se fosse hoje: um vendedor de livros deixou uma coleção de clássicos infantis para minha mãe analisar. Dentre eles, havia a história A galinha ruiva. Abri a obra e comecei a lê-la em voz alta. A certa altura, olhei para a porta da cozinha e minha mãe estava com os olhos marejados. Eu tinha cinco anos de idade.


A escola também colaborou muito para que eu desenvolvesse o gosto pela leitura e o consequente amor pelas palavras. Na época em que estudei, as crianças só podiam ingressar no Primário (hoje, Fundamental I) aos sete anos. Por isso, cursei o Pré-Primário duas vezes. Como tive uma excelente professora, aos cinco anos de idade eu estava alfabetizada.


Há um outro episódio: este, na escola. Estávamos eu e minha professora do Pré-Primário sentadas no gira-gira do parquinho. O vento trouxe para perto do meu pé uma folha de jornal toda amassada. Recordo-me de pegá-la e ler uma notícia sobre o ministro Jarbas Passarinho. A professora enviou um bilhete para minha mãe contando o ocorrido e dizendo que eu tinha muito jeito com as letras.


Outro aspecto importante relacionado ao gosto pelo universo das línguas tem estreita relação com meus avós e pessoas com mais idade em minha família. Convivi muito com eles. Eu ficava fascinada com as expressões engraçadas que usavam: meus avós e tios-avós maternos eram do interior. Tinham um vocabulário bem peculiar. Eu tinha uma caderneta na qual anotava tudo aquilo que eu ouvia durante as conversas. Era um mundo à parte! Meu avô paterno tinha os pais italianos. Muitas vezes se dirigia a mim usando palavras como “bambolina”, “piccolina”. Minha avó paterna era portuguesa. Estive exposta a diversos sotaques. A combinação do vocabulário aliado aos diferentes sons que uma mesma palavra pode adquirir sempre despertaram meu interesse.


Quanto a escrever, sim, considerei a possibilidade (e já arrisquei algumas linhas). Apesar disso, em virtude de ter lido alguns dos melhores escritores do mundo, acabei ficando excessivamente crítica com relação àquilo que produzo. Mas a possibilidade não está descartada.


2. Por que, entre tantos idiomas, você escolheu o inglês?


No colégio em que eu estudava, tínhamos aulas de inglês. Certo dia, cheguei em casa muito empolgada com a aula e com a professora. Ao contar à minha mãe no horário do jantar sobre as palavras que aprendera, ela me disse que havia escolas especializadas no ensino do inglês e perguntou-me se eu gostaria de ingressar no curso. Eu tinha oito anos. De lá para cá, nunca mais parei. E mesmo após tantos anos, continuo fascinada com a língua tal qual a primeira vez que tomei contato com ela. Posteriormente, estudei espanhol, cuja musicalidade também me encantava.


3. Quais autores mais gostou de traduzir?


Tradução literária publicada tenho o conto que a própria Editora Astronauta publicou recentemente (The Fortune-teller - tradução de A Cartomante, de Machado de Assis) e um romance, de autor não muito conhecido no Brasil.



Como professora, pude escolher traduzir alguns dos autores que mais admiro: Tennessee Williams, Frank O’Connor, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Edith Wharton, William Faulkner, Shirley Jackson, James Joyce. Há tantos que fica difícil lembrar-me de todos.


Para a monografia da especialização, traduzi meu conto predileto de um autor norte-americano não muito conhecido no Brasil: Saul Bellow, um “jewish-american writer” como eles dizem. O título do conto é “By the Saint Lawrence”, a história de um professor universitário que volta à terra natal e recorda episódios de sua infância.


A atividade docente possibilitou traduzir trechos de algumas obras e trocar impressões com os alunos. Com esse trabalho, pude experienciar o processo de tradução de alguns dos textos e autores que tive a sorte de conhecer primeiro por meio da leitura e, posteriormente, da tradução.


4. Quais autores você sonha, um dia, traduzir?

Paul Auster, Joyce Carol Oates, John Irving, Ian McEwan. Estes são os que me vêm à memória agora.


5. Qual seu principal propósito de vida, ensinar ou traduzir?

Se fosse preciso escolher, ficaria com a sala de aula. Embora a experiência de mercado enriqueça as aulas na medida em que oferece aos alunos um pé na realidade da profissão, ela não é indispensável para que eles desenvolvam as habilidades técnicas próprias do ato de traduzir.


"As aulas me oferecem a possibilidade de fazer as duas coisas que mais amo: ensinar e traduzir, além do que posso escolher os textos com que vou trabalhar, o que não acontece quando traduzo profissionalmente." Fátima Abbate

6. Como foi a experiência de traduzir Machado de Assis para a língua inglesa?

Foi bastante desafiador. Além de se tratar de nosso maior expoente na literatura, o gênero conto, devido à concisão (não tem o “fôlego” do romance), exige cuidado dobrado nos detalhes: uma vírgula, determinada palavra, tudo conta.


Eu já conhecia o conto desde os tempos da escola. Mas uma coisa é ler uma obra apenas de fruição, outra é lê-la com o intuito de traduzi-la.


O texto de Machado tem linguagem ambígua e tom irônico. Essas características devem ser percebidas pelo tradutor e mantidas de modo que o leitor do texto em língua estrangeira possa ter uma experiência tão próxima quanto possível daquela que nós, falantes de português, temos ao ler o texto original.



7. Você acredita que o tradutor recria, de certa forma, a obra que traduz?


Sim, e esta é uma discussão bastante frequente na área dos estudos da tradução. Independentemente de não haver correspondência direta entre as línguas, a tradução de literatura tem um outro desafio: o uso peculiar, incomum da língua. Aliado a isso, cada autor tem uma “voz” diferente, um modo todo seu de dizer as coisas a que damos o nome de “estilo”. Por isso, ao tentar recriar uma peça literária por meio da tradução, é preciso “ouvir” essa voz, identificar-lhe o tom e procurar encontrá-la na língua de tradução. Entretanto, um cuidado é necessário: traduzir não é interpretar.


O modo de enxergar o processo tradutório e a abordagem do texto, em especial a literatura, muda com o passar do tempo. Em geral, falamos de domesticação e estrangeirização. Domesticar, grosso modo falando, implica aproximar a tradução dos referentes próprios da cultura que a receberá. Um exemplo simples disso é a adaptação de nomes próprios. Já a estrangeirização consiste na preocupação em manter vivos na tradução os referentes presentes na obra original. Um dos recursos que pode ser utilizado é o acréscimo de notas de rodapé, a manutenção dos nomes das personagens no texto original, dentre outros. Atualmente, a tendência é estrangeirizar os textos traduzidos. Mas conforme eu disse, tratei bem superficialmente do assunto.


Com relação a mim, sou favorável a uma abordagem estrangeirizadora, ou seja, creio que a preocupação em recuperar os referentes peculiares à cultura do texto de partida enriquece tanto a cultura quanto o repertório de quem recebe a tradução.


Gosto de dizer que traduzir é namorar o texto. Para que o relacionamento vá em frente é preciso aproximar-se dele e, pouco a pouco, conhecê-lo, com calma, sem pressa, com muito diálogo, respeitando os limites.


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8. Qual a sua ligação com a Era Medieval, de onde vem a imagem de ser uma copista encerrada numa catacumba?


Tive um professor de história que me marcou muito. A primeira vez que ouvi falar da Idade Média foi em uma de suas aulas. Quando ele falou dos copistas e do trabalho que realizavam, encerrados nas catacumbas, como eu gostava muito de escrever, imediatamente me identifiquei com eles. Mais tarde, tomei conhecimento de que havia aqueles que traduziam os textos sagrados do grego e do latim. É importante lembrar que o protetor dos tradutores é São Jerônimo, que também foi um copista. Mais tarde, li “O nome da rosa”, romance de Umberto Eco, Editora Record. O estímulo para ler a obra foi o filme feito a partir da peça literária, e a história se passa na Idade Média e envolve um mosteiro e monges copistas.


O ato de traduzir é solitário. Não importa qual modelo de computador você tem, se trabalha em um escritório movimentado ou em casa. Sempre serão você e o texto. Agrada-me muito a ideia de trabalhar só, de as decisões dependerem de mim, de eu ficar meio apartada do mundo enquanto “desvendo” os símbolos e mistérios dos textos.


Como passo muito tempo trabalhando só, quietinha em meu escritório, gosto de imaginar que sou a versão contemporânea de um copista, embora eu esteja muito longe de ter a cultura e a erudição de um deles.


9. Quais as principais aspirações da nova geração de tradutores?


Estou fora da sala de aula há algum tempo. Mas acredito que ainda há a crença e a expectativa de que um curso superior preparará o aluno a ponto de ao final da experiência estar preparado para o “mercado” e, naturalmente, acontece o mesmo com os egressos do curso de Tradução e Interpretação.


Creio que aquilo que os atrai seja a possibilidade de desenvolver um trabalho de caráter mais autônomo e remoto, o que em um mundo sujeito a tantas mudanças torna-se um diferencial. Outros apreciam o estudo das línguas, mas não o magistério. Então, traduzir é um modo de estar em contato com a língua, trabalhar com ela fora do ambiente da escola.


10. Que conselho a você daria para quem pretende seguir essa profissão?

Não é necessário mencionar que o máximo domínio possível das línguas tanto de partida quanto de chegada é imprescindível, ainda que não suficiente.

Diferente do que acontece com outras áreas em que as oportunidades de trabalho estão mais “estabelecidas, visíveis e palpáveis”, com a tradução a história é outra. As colocações estão pulverizadas. Em compensação, o crescimento de oportunidades de trabalho autônomo e remoto, que parece estar se tornando a tendência, favorece o exercício de nossa profissão.


As empresas de tradução não oferecem salários muito convidativos. Isso se aplica essencialmente às agências de tradução; em contrapartida, são um bom treino para o desenvolvimento das habilidades tradutórias e o contato com algumas das ferramentas usadas em nosso dia a dia.


Outro ponto a considerar é o fato de que, de maneira geral, não escolhemos nem a área de atuação nem os textos. Por isso, a menos que você consiga direcionar sua experiência para a área de sua escolha, acabará sendo “escolhido(a)” pela área.


Tradução e língua não se aprendem apenas em sala de aula, aprendem-se também (e muito eficazmente) consumindo vida, isto é, viajando, tendo contato com outras culturas, indo ao cinema, lendo, visitando exposições, namorando, acertando e errando seja naquilo que for.


O aprendizado de uma língua jamais tem fim, e quanto mais estudamos, mais há a aprender. Isso vale tanto para as línguas estrangeiras quanto para a língua materna. Aliás, seja proficiente principalmente em sua própria língua pois é nela que seu trabalho como tradutor ou intérprete florescerá.


Saia do casulo! Somos todos meio “ermitões”: gostamos muito do anonimato e do conforto que nos traz o “clique” das teclas do computador. Mas lembrem-se do ditado: “Uma andorinha só não faz verão”. Traduzindo: sozinho ninguém chega a lugar algum. Sem essa história de ter medo de que os colegas “tomem” seus clientes. Muitas vezes, é preferível dividir um trabalho, ou mesmo indicá-lo a um conhecido (em cuja capacidade você confie) a querer abraçar o mundo ou arriscar-se em uma empreitada para a qual você não esteja preparado.


Quem desejar menos risco e alguma garantia (veja bem, eu disse “alguma” porque garantia total não existe), pode tentar uma vaga em um concurso (há muito poucas) ou alternar a tradução com trabalhos de revisão (que diversamente daquilo que crê a maioria exige ainda mais preparo) ou aulas. Tudo dependerá da vocação e de como você direcionar sua carreira.


Um bom termômetro para receber feedback dos textos que traduz é pedir a amigos, conhecidos ou parentes que leiam o trabalho que fez. Muitas vezes, o retorno recebido dessas pessoas pode nos ajudar a fazer ajustes em nossa produção. Outra boa dica é ler a tradução em voz alta ou gravar sua leitura. Isso nos oferece um panorama um pouco mais claro das possíveis alterações e melhorias a serem feitas. Uma boa estratégia é cotejar um texto com uma tradução pronta, analisar as escolhas feitas pelo tradutor e as soluções encontradas para trechos mais intrincados. Mas atenção, procure não fazer uma apreciação qualitativa do texto traduzido. As condições de tradução de um texto, o gênero a que pertence e o público a que se dirige, bem como a época em que foi traduzido (isso vale especialmente para a literatura) podem variar, e se varia a época, variam também as condições de produção.


Converse sempre com seu cliente e esteja sempre pronto(a) para expor e justificar com clareza as decisões tomadas no decorrer do processo tradutório.


A tradução de literatura é considerada o “filet” e em geral é encomendada apenas a expoentes da própria literatura ou da tradução. Mas anime-se: 97% de tudo o que se traduz no mundo não é “Literatura” (aqui propositalmente grafada com a inicial maiúscula para distinguir dos textos registrados por escrito que não envolvam aqueles considerados canônicos pelo estilo e outros parâmetros). Como podem ver, trabalho não falta.


Quanto a dizerem que a tecnologia acabará substituindo o tradutor, duvido; ao menos não tão cedo. Acredito que para determinados gêneros, em que há certa uniformidade no estilo, isso possa acontecer. Apesar disso, ainda estamos um tanto longe das sutilezas que apenas o cérebro humano é capaz de engendrar. Aliás, é possível que os profissionais tenham de aprimorar cada vez mais seus conhecimentos de modo que consigam identificar nas traduções automáticas minúcias das quais as máquinas não dão conta.


Procure exercer o ofício com profissionalismo. Não faça dele um “bico”, pois isso servirá apenas para banalizar a profissão e desmerecê-la. Tal como se aplica às outras áreas, a tradução também não é coisa para amadores nem para curiosos. Cabe a nós, portanto, valorizá-la e exercê-la com o devido (e merecido) respeito e comprometimento.


De resto, é abraçar o que vier, de peito aberto! Que outra profissão permite que a exerçamos de qualquer lugar do mundo desde que tenhamos um computador na mochila e acesso à Internet? E tudo isso enquanto aumentamos nosso repertório, tomando conhecimento de aspectos do mundo e da existência que de outro modo jamais viríamos a conhecer.


Comece a ler agora mesmo a tradução de "A Cartomante", de Machado de Assis.


Dados do ebook:



Autor: Machado de Assis

Título: The Fortune-teller

Tradução: Fátima Abbate

Editora: Astronauta

Lançamento: 21 setembro de 2020

Páginas: 26

Formato: digital



Disponível na Amazon

e nas principais livrarias virtuais






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